O problema não é a população, mas sim o seu consumo

“Planet of Humans” (Planeta dos Humanos em português) o controverso documentário de Michael Moore e Jeff Gibbs está novamente disponível na plataforma de streaming YouTube. Debatido na mídia como uma produção recheada de polêmicas e questionáveis alegações, o filme é finalizado com a seguinte sugestão: a solução para as Mudanças Climáticas está no controle populacional. 

A despeito de várias das afirmações feitas no documentário terem se mostrado falsas e sem fundamento, a lógica por detrás deste último conceito parece simples. Menos pessoas no mundo, menos consumo, menor utilização de recursos, logo, menos gases de efeito estufa (GEE). Não é à toa que de tempos em tempos as manchetes de prestigiados veículos de comunicação como o The Guardian e o The New York Times colocam em dúvida os benefícios de se terem filhos.

Segundo estudo publicado no periódico científico Environmental Research Letters em 2017, ter menos filhos seria a mais impactante e assertiva ação para se combater as Mudanças Climáticas. De acordo com os autores, a decisão de uma família estadounidense em deixar de ter um filho (ou ter um filho a menos) resulta em uma redução de GEE equivalente ao que seria obtido se 684 adolescentes passassem o resto de suas vidas reciclando. Colocando os números em uma balança a lógica parece simples, mas não é.

A conclusão obtida na pesquisa, assumida como uma máxima a ser seguida ao redor do mundo, se fundamenta em documentos governamentais de apenas 4 localidades e entidades: Estados Unidos, Canadá, Austrália e União Europeia. Não há qualquer menção sobre as implicações dos resultados obtidos dentro do contexto de países em desenvolvimento, que apresentam dinâmicas sociais e de consumo completamente distintas daqueles adotados como referência. Em segunda instância muita cautela deve ser tomada ao se associar controle populacional e mudanças climáticas. O que a princípio pode parecer como uma debate científico, ecoa e transmite fundamentos de uma recente ideologia eugenista denominada como “Ecofacismo”.

Provavelmente o termo deve lhe soar familiar mas você não se recorda ao certo de onde. O conceito ascendeu a mídia após os massacres de El Paso (Estados Unidos) e Christchurch (Nova Zelândia) que culminaram em um total de 22 e 51 mortes, respectivamente. Em ambos fatídicos eventos os autores dos incidentes se declaram como “ecofacistas” e culparam o crescimento populacional pela dizimação do meio ambiente, mas não qualquer crescimento populacional, o crescimento populacional de imigrantes. 

A prerrogativa do controle populacional não possui fundamentação científica. Afinal, o crescimento populacional não se relaciona de forma tão simplista e linear com as emissões de GEE, e por conseguinte, as mudanças climáticas. Conforme demonstrado por pesquisa feita na Universidade de Leeds na Inglaterra (University of Leeds), o potencial poluidor de uma sociedade depende, não do seu tamanho, mas principalmente da concentração de riqueza. Os resultados do estudo, o qual comparou a pegada de carbono relacionada ao setor energético de 86 países, demonstrou que, de acordo com a categorização de status socioeconômico adotada no estudo, os países 10% com melhor status (ou seja, mais ricos) consomem cerca de 20 vezes mais energia do que os países 10% mais pobres.

Se você ainda não está convencido vamos para mais alguns exemplos. No estado de Utah nos Estados Unidos, a população representa cerca de 0,97% da população total do país e 0,00041% da população mundial. Em 2010, por dia cada habitante de Utah consumia cerca de 167 galões de água (632 litros/hab/dia), em 2015 essa quantia atingiu o número de 242 galões de água (aproximadamente 916 litros/hab/dia). Para fins de comparação, a Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda como quantidade mínima necessária para satisfazer as necessidades básicas 20 litros/hab/dia, sendo o ideal um consumo diário per capita de 50 a 100 litros.

Os dois países que lideram o ranking de consumo de carne per capita anual no mundo  são, coincidentemente, dois dos quatro abordados no estudo que sugere o controle populacional publicado na Environmental Research Letters. Ao passo que cada cidadão estadounidense e australiano consome em média, respectivamente, 124.1 e 121.6 quilogramas de carne por ano, as pessoas em países como Índia, Nigéria, Uganda e Tanzânia passam o ano com menos de 10 quilos de carne.

Poderíamos ficar horas a fio listando diversos exemplos de como os padrões de consumo per capita são desiguais. Mas mesmo que não fosse esse o caso, a premissa do controle populacional se fragiliza e cai diante dos seguintes questionamentos: onde e quais grupos sociais passarão pela estratégia de controle social, e acima disso, quem será responsável por conduzir esse procedimento? 

Não é a primeira vez, e provavelmente nem a última, que a humanidade se depara com teorias demográficas que introduzem de forma velada princípios segregacionistas e discriminatórios. Mas será a primeira vez que a degradação ambiental vai ser utilizada como justificativa plausível para atos violentos. Se, por um lado, as mudanças climáticas são a consequência da violência humana desenfreada contra a natureza, sabemos que certamente a violência humana contra a própria humanidade não é solução.  

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